9 Outubro, 2024

As Origens

O boxe tem uma coisa em comum com a vida em sociedade: é anterior ao Homem. O filme de Stanley Kubrick – 2001 Odisseia no Espaço, ilustra o nascimento da humanidade com uma cena na qual um primata agarra um osso comprido e bate com ele numa carcaça. Numa cena seguinte, mostra-se o emprego imediato que este «primeiro homem» fez da sua descoberta. Serviu-lhe para regular, com vantagem para si, um conflito que o oponha a alguns dos seus semelhantes. Sem grande esforço de imaginação, pode-se supor que nas comunidades pré-humanas –  dada a falta de qualquer ferramenta  –  o punho nu desempenharia o papel de arma mais eficaz para resolver os antagonismos dos nossos longínquos antepassados. Estamos, porém, muito longe do boxe, tal como o conhecemos neste Século XX, tratando-se, apenas, de vagas origens que não têm outro interesse, senão o de sublinhar o facto de que o combate com os punhos nus, é absolutamente natural nos homens. Todavia, é preciso realçar que nas sociedades pré-históricas, o pugilato não se apresenta como uma actividade desinteressada –  um desporto  –  mas entra no quadro da luta pela vida (struggle for life).

O boxe, como desporto, fez a sua entrada oficial na literatura, graças a Homero que na Odisseia, relata o naufrágio de Ulisses, cuja jangada foi lançada sobre as costas da terra dos Feócios. Então, o rei Alkinoos organizou festas em honra do herói. O filho do rei Laodamas ganhou o torneio de boxe. Propôs a Ulisses defrontá-lo, dizendo: «- É a tua vez, estrangeiro! Vem mostrar as tuas forças nos jogos em que te treinaste! Deves sabê-lo, muito bem! Há lá maior glória nesta vida do que saber utilizar as pernas e os braços!? Anda… vem experimentar e afastas os desgostos!…»

Ulisses, o sábio, respondeu-lhe assim: «- Mas porquê, Laodamas, essas brincadeiras de convite? Se o meu coração se abandona aos desgostos mais do que se entrega aos jogos, é porque muito penei e sofri! Imitaram-me muito: boxe, corridas a pé, lançamento do disco. Não recuso nada, nem recusarei combater contra um amigo? Seria preciso ser maluco ou possuir um coração de miserável para provocar nos jogos aquele que acolheu um país estrangeiro. Tal facto é o mesmo que amputar-se!»
Pelo que atrás fica dito, o boxe parece ter sido já bem desenvolvido na Grécia, oito séculos a.c. Numa sociedade em que a força e a coragem físicas ganhavam os favores dos deuses, compreende-se que os jovens nobres – Laodamas não era filho de um rei!? -, a ele se dedicassem e, isto explicará o respeito quase religioso que rodeava os pugilistas. Este aspecto manter-se-ia até cerca de 100 anos mais tarde, quando os adversários já não eram, necessariamente, aristocratas e o boxe se tornou numa modalidade olímpica. Naquela época, os pugilistas combatiam inteiramente nus. Só as mãos estavam envoltas no «cesto» – uma espécie de dura luva de tiras de cabedal, ornadas por bolas de chumbo ou de ferro. Isto acontecia, pois o boxe é um desporto ofensivo. De ataque. Não se tratava de esquivar, mas de meter o metal contra a carne. No entanto, devemos notar que o combate, como o sugerem as passagens da Odisseia, atrás citadas, se disputava segundo regras cavalheirescas – parece que só eram autorizados – e que não se deveria combater um boxe contra um amigo ou contra quem os recebia. O «cesto» apresenta-se como uma arma terrivelmente destruidora e, neste aspecto, opõe-se essencialmente à luva actual, cujo objectivo é proteger ao mesmo tempo, o corpo do pugilista que recebe o golpe e a mão daquele que o dá. Nestas condições, pode supôr-se que aquele que atingia primeiro o adversário, o estropiava definitivamente. Levando em conta os hábitos impiedosos da época, concebe-se bem a ideia porque o boxe era especialmente apreciado em Esparta. Mas, o facto de muitas e muitas narrativas relatando proezas de pugilistas, demonstra que era uma actividade muito cultivada em toda a Grécia.
Por isso mesmo a vamos encontrar, muito naturalmente, na antiga Roma, sob a forma de um jogo de circo. Apesar dos perigos a que ele submetia os seus praticantes, o boxe não provoca, sistematicamente, a morte e, por isso foi, pouco a pouco, declinando, face às exibições bem mais sangrentas do que as lutas de gladiadores davam ao público romano. Com a queda do Império Romano, perdeu-se a traça do boxe, mas, tudo leva a crer que ele continuou a ser praticado, visto que a sua prática foi assinalada no fim do Século IX, no Sul de Inglaterra. No Século XIV, também em Inglaterra, os pugilistas combatiam a punhos nus, o que fazia com que tal tipo de luta se assemelhasse mais ao antigo pancrácio do que ao boxe, com as mãos envoltas nas correias do «cesto» antigo. Em todo o período que vai desde o declínio do Império Romano até ao princípio do Século XVIII, a história do boxe escreve-se em linhas intermitentes, pois poucos documentos a ele se referem. No decurso de todos estes séculos, a técnica parece não ter evoluído nada e os combates, punham frente a frente, homens sem jogo de pernas, sem jogo defensivo, preocupados somente em bater com a maior força possível. Sob este aspecto, o boxe praticado nessa época em Inglaterra, era o herdeiro directo do boxe grego.

A primeira vedeta de que se tem conhecimento foi um tal James Figg, cujas características correspondiam exactamente às necessidades: homem forte, corajoso e brutal. Ele combatia no ano de 1719 e nada o distinguia dos seus antecessores, nem dos seus rivais. Mas, o seu nome conseguiu chegar até nós. Porém, em breve apareceu um tal Jack Broughton, que viria a ser o primeiro a «fazer mexer» o boxe. O seu sucesso – a partir de 1732 e durante 18 anos, voa de vitória em vitória – vem do facto de ter introduzido na prática do boxe vários elementos novos.
Nessa época, os combates eram organizados às escondidas, perseguindo as autoridades os pugilistas, por provocarem ajuntamentos e desordens. Efectuavam-se ao ar livre, num prado, de harmonia com a tradição. Ou, então, nos salões das traseiras de algumas casas.
Davam motivo a apostas e decorriam de harmonia com as regras estabelecidas pelos organizadores, quer dizer, sem qualquer carácter fixo. Tirando todas as vantagens das dimensões sempre variáveis do recinto, no interior do qual nasceram os campeões, Broughton foi o primeiro pugilista a utilizar as deslocações das pernas para se defender dos ataques do adversário. Esta novidade foi um facto digno de registo. Ele introduziu o espaço na técnica. Em consequência, a força bruta deixou de ser o suficiente, pois, passou a ser necessário ter também fôlego, para triunfar, tanto mais que os combates, a maior parte das vezes, eram até ao fim (finish) – salvo a intervenção da polícia ou uma súbita tempestade. Desta iniciativa de Broughton, nasceu posteriormente o jogo de pernas como elemento básico do boxe contemporâneo. Os organizadores tiveram, também, de se debruçar mais seriamente sobre as dimensões do terreno. Foram obrigados a traçar um círculo sobre o solo, ou a implantarem nele umas estacas ligadas por uma corda. A limitação das áreas de combate não datam da época de Broughton, mas foi ele que pôs em relevo, devido ao seu estilo, os inconvenientes resultantes da falta de regras estrictas sobre o assunto. Os «boxeurs» eram desclassificados se ultrapassassem esses limites para escaparem aos golpes do adversário. De passagem, assinalamos que esta regra tem uma certa semelhança com a do sumo asiático.

A observação de Broughton tratou, também, dos golpes lançados. Até à sua época, estes eram desferidos em «volée», ficando o corpo rígido, como acontece nas lutas entre rapazes, nos recreios das escolas. ele verificou que os golpes se tornavam muito mais eficazes sendo acompanhados por uma rotação das espáduas, pois o punho beneficiava do peso do busto.

A nobreza interessou-se por estas descobertas – por causa das apostas – e Broughton fundou uma academia de boxe, onde ensinava os seus métodos. Este foi o nascimento da técnica do pugilismo. Finalmente, Broughton está na origem das London Prize Ring Rules – primeiro regulamento oficial do boxe inglês. As inovações técnicas de Jack Broughton não deram frutos imediatos e os campeões das gerações seguintes assemelhavam-se, estranhamente, aos precedentes. De qualquer forma, Broughton estava muito adiantado para a sua época e se a via por ele aberta não foi seguida de imediato, foi porque as suas descobertas, mesmo tão importantes como parecem, com o recuar do tempo, ficaram na prática pouco publicitadas. Em especial as London Prize Ring Rules, não eram muito severas e o puro poder físico dos pugilistas, continuou a ser o factor essencial da vitória.

O último facto relativo às origens do boxe, é a emigração da Inglaterra  para os Estados Unidos da América. No quadro deste novo país, o boxe ganha um grande impulso e a civilização de salão, vai a par com um desenvolvimento rápido dos combates de boxe. Desta maneira, dois países – Inglaterra e Estados Unidos da América – vão manter escolas de boxe que progridem paralelamente. Assim, surgem inevitavelmente, duas consequências:

  1. A necessidade de unificar, definitivamente, regras que regulam os combates e, esta necessidade explica a acção do Marquês de Queensbury e de Lord Londsdale, que são os fundadores das regras actualmente em vigor.
  2. A organização de combates internacionais e, muito especialmente, de campeonatos mundiais.
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